sábado, 29 de setembro de 2012

O cordeiro, a cordeirinha, o Lobo Bão e outros bichos





Roubartilhado do blog do Gilson Sampaio


Fernando Soares Campos


Quase todos nós conhecemos a fábula do cordeiro que estava bebendo água num riacho, na parte de baixo, e foi interpelado por um lobo que o acusava de estar sujando as águas do lado de cima do córrego. Depois de bate e rebate em que o lobo desdobrava suas acusações, o cordeiro foi finalmente abocanhado pelo cruel predador. Isso aconteceu há muitos anos, quando os bichos ainda falavam um onomatopaico dialeto que criaram ouvindo contrabandistas franceses de pau-brasil.

Entretanto, quelques années plus tard, os bichos inventaram outro idioma, o portinglês, e nova história se desenrolou com um enredo às avessas em determinados pontos.

Era outra vez outro cordeiro... Certo dia ele decidiu escalar um aclive muito íngreme na mata. Com muito suor, vencendo toda sorte de obstáculo, pedras e cascalhos foram ficando pra trás; ele tomava cuidados e desvios, até que alcançou o topo do morro. Em lá chegando, ficou deslumbrado com a paisagem, um cenário pitoresco, terrivelmente fascinante, capaz de deixar qualquer animal alheado. E foi assim que, por uns momentos, o bicho ficou: absorto nos próprios pensamentos.

O canto e o voo dos pássaros, o estridular de grilos e cigarras, o farfalhejar das copas das árvores, o coaxar dos sapos... e até o arrulhar da rolinha, tudo isso o encantou, de tal forma que quase não ouvia outros animais, não notou que, nem tão longe, porcos-espinhos grunhiam, raposas regougavam, araras taramelavam, veados bramiam, cobras sibilavam, ratos chiavam e até um insaciável lobo ululava. Ora, é ululante! Lobos ululam.

Distraído, o cordeiro passou a mordiscar a verdoenga relva, em seguida resolveu bebericar no riacho. Só então, ouviu uma voz tarameleira que vinha de cima e uma árvore:

– Você está sujando as águas cristalinas do riacho! – taramelou uma arara – Não vê que o nosso líder, o Lobo Bão, está bebendo logo abaixo? Faz algum tempo que ele anda indisposto, por isso não tem subido o morro pra beber onde sempre bebeu, aí na cabeceira.

No primeiro instante, o cordeiro assustou-se, estremeceu, fora pego de surpresa. Mas se recompôs e retrucou:

– Impossível eu estar sujando as águas do riacho, pois minha língua sempre foi limpinha, limpinha! Duvido até que nesta mata exista animal com a língua mais limpa que a minha.

Lá de baixo o Lobo ululou:

– Você está dizendo que minha língua é mais suja que a sua?!

– Não tive essa intenção. Quero apenas dizer que pode até ter língua igualmente limpa, mas mais limpa que a minha, não

– Mas o fato é que você está sujando sim as águas cristalinas do riacho.

– Tá bem, vamos admitir que, de certa forma, poluí as corredeiras com minha saliva. Mas isso vai acontecer sempre que qualquer animal vier beber aqui em cima, na nascente; principalmente os de língua ferina, ágeis, que revolvem e turvam as águas. Eu até que estou me comportando educadamente, lambendo devagar – deu uma olhada em sua volta, ergueu os olhos e apontou a arara –. Ela disse que o senhor costumava beber aqui, então...

– Então?! Então o quê?! Você quer dizer que eu também sou porco como você?! Pois fique sabendo que, quando eu bebia aí em cima, usava canudinho de bambu!

– Acontece que não tem mais bambu por essas bandas. Os nativos cortaram tudo pra fazer cadeiras, mesas e artesanatos decorativos.

– Sonso! Agora está culpando os artesãos. Isso é calúnia! Como estou me sentindo um pouco cansado, não vou subir até aí pra lhe dar o corretivo que merece, mas vou levar o caso ao Senhor Corvo. Com certeza ele haverá de julgar sua insolência e injúria. E vai cassar seu suposto direito de beber água na cabeceira, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

“Os lobos ululam e a caravana passa, cabreira, mas passa” – pensou o cordeiro.

Irritado, o lobo afastou-se banzeiro, rangendo os dentes, rosnando qualquer coisa ininteligível, e foi fornicar na sua furna.

O caso provocou certa dor de cabeça no cordeiro, mas tudo parecia ter-se resolvido, e ele foi ficando lá no alto, mordiscando a relva e bebericando no riacho...

O tempo foi passando, o cordeiro estreitou relações com alguns animais, como a coruja, o sapo, que, por descuido, ele quase engoliu enquanto pastava, com micos e macacos, grilos e cigarras, formigas e cupins, também com alguns tamanduás. Até já havia esquecido a querela com o Lobo.

Certo dia, o cordeiro estava brincando de cabra-cega com uma cordeirinha sua amiga, aí, sem o quê nem pra quê, ele sugeriu:

– Amiguinha, vem comigo tomar água na nascente do riacho.

– Na nascente?! Olha, amigo, nos últimos tempos tenho tomado água da nascente, como todos os animais da mata, mas aqui um pouco abaixo da cabeceira. Não é a mesma água?

– É, mas você precisa ir lá em cima, vai ver que bela paisagem, ventos uivantes e brisas suaves se alternam. Às vezes a paz é tanta que a gente chega a cochilar na relva...

– E as formigas não picam a gente?

– As formigas? Que nada, amiga! As formigas são mansinhas e estão mais preocupadas em abastecer os formigueiros com picadinhos de folha e outras migalhas. O perigo mesmo é ser ferroado por um escorpião, ou mesmo picado por uma cobra. Mas vale a pena ficar lá por uns tempos.

Então, os dois decidiram subir o morro naquela primavera com cara de verão. O cordeiro, já bastante experiente, ensinou a cordeirinha a escalar o aclive vencendo pedras e cascalhos...

Chegaram lá em cima um tanto gastos, mas felizes. A bicharada, que assistia a tudo por todo canto, até desconfiou que daquele mato sairia coelho, pois os dois trocavam olhares insinuantes, lânguidos até – dir-se-ia.

Incerto dia de lua cheia, o lobo, que contava com os préstimos de arapongas por todos os recantos da mata, foi informado de que o cordeiro saíra mata adentro em busca de ervas fresquinhas e até flores para presentear a cordeirinha.

O velho lobo maquiavélico reuniu a matilha numa caverna cavernosa cuja entrada é camuflada pela lâmina d’água de uma cachoeira. Ali, pela madrugada, bolaram um plano: enviar um convite à cordeirinha.

Ao lusco-fusco do anoitecer, um urubu-correio pousou no galho seco de uma árvore e soltou a encomenda na relva. A cordeirinha apanhou o bilhete e o leu:

“Dear, querida, eu sou seu brother irmão e estou muito preocupado com você. Aquele cabra-cordeiro, depois de comer toda a relva comível, escafedeu-se, qual vagamundo que é, deixando you aí sozinha nesse posto avançado. A estiagem prolongada está ressequindo a mata. Essa foi a herança que ele lhe deixou. Mas nem tudo está perdido, querida darling, venha abrigar-se em minha furna. Aqui você será tratada como uma rainha queen.

Kisses

Lobo Bão”

A cordeirinha se abalou. “Tem fel nesse mel”. Correu até a beira do platô do morro e gritou a pulmões soltos, fazendo sua voz ecoar por toda a mata:

– Socorro, cordeirinho! Volte logo! O Lobo Bão quer me comer!

Moral: Lobo amoral pensa que toda cordeirinha veste casaco de vison e roda bolsinha em Pigalle.

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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