domingo, 12 de agosto de 2012

De capitais e vampiros


DEBATE ABERTO

De capitais e vampiros

Em meio à devastação provocada pela crise financeira, vemos algumas reações que lembram o “complexo de Noé”. A mais complicada delas é a que decreta, sem mais nem menos, a morte das idéias aproveitadas pelo neo-liberalismo, como as de Friedrich von Hayek ou as do Consenso de Washington.

“O importante não é vencer, mas sair ganhando”.
Corruptela de um conhecido ditado popular.


O pior que pode acontecer a um pensador é se aferrar ao “complexo de Noé”. O que é o “complexo de Noé”? Em algum momento de sua viagem em meio ao dilúvio, Noé deve ter-se deitado, engolfado pelo fedor das bestas e dos excrementos, mas com um pensamento confortador: “eu é que tinha razão”. Depois, é bom lembrar o conto bíblico por inteiro, ao sair da arca Noé assou todos os animais da arca (a primeira churrascada de que sem tem notícia, cujo odor agradou a Jeová) e logo em seguida tomou um porre.

Em meio à devastação provocada pela crise financeira, vemos algumas reações que lembram o “complexo de Noé”. A mais complicada delas é a que decreta, sem mais nem menos, que idéias aproveitadas pelo neo-liberalismo, como as de Friedrich von Hayek e da Escola Austríaca de Economia, corrente de que foi fundador e tributário, ou as do Consenso de Washington, ou as da Escola de Chicago e Milton Friedman, estão mortas e sepultadas em algum sarcófago da história, depois do advento da crise. E que daí o mundo retornará a um keynesianismo reforçado, ou ainda a visões mais ousadas, como as de Harold Laski.

Desculpem os crentes, mas isso é como acreditar que no último filme de vampiro o Conde Drácula morreu mesmo e nunca mais retornará às telas. O problema dessas teorias não está, em primeiro e em último lugar, nelas mesmas, mas sim na vontade política que as abraçou e as catapultou para o centro da discussão e implementação de práxis desestruturadoras do estado de bem estar social, assim como a primeira e última virtude das idéias de Keynes não estava propriamente em suas idéias, mas sim no fato de que ele teve a oportunidade de pô-las em prática e depois de vê-las, em parte, impulsionar o New Deal de Roosevelt.

É claro que a formulação das idéias, seu rigor, sua clareza, têm méritos em si e por si. Caso contrário, O Capital de Marx e suas idéias correlatas não teriam a influência e a importância que tiveram, têm e terão. Não se pode separar inteiramente, nesses casos, a implementação de idéias de Hayek e outros delas mesmas e do modo como foram formuladas, nem do contexto em que o foram. Ainda assim, duvido, por exemplo, que Hayek as reconhecesse por inteiro na ação da dama de ferro da Grã-Bretanha, embora ela carregasse seus livros na bolsa como pregadores levam a Bíblia. Da mesma forma John Williamson, que cunhou o termo “Consenso de Washington”, renegaria mais tarde muito do que se fez em seu nome.

Em algum momento de O Capital, Marx diz que este é como um vampiro, que suga o sangue do trabalho vivo para se fortalecer, ou algo assim dito com mais estilo e graça. Isso também acontece no plano das idéias. O mais provável é que muito se debata sobre regulamentação, disciplina nos mercados, etc. Mas se não houve uma alteração nas grandes hegemonias políticas que estão à solta pelo mundo velho sem porteira, as velhas idéias voltarão renovadas, em peles de carneiro ou de lobos que sejam, mas sempre reluzentes e sedutoras, a pregar que o individualismo e a liberdade de mercados não são apenas parte da civilização, mas sim o seu “core”, o seu nervo, e também sua arca de Noé, onde os aptos se salvarão, e os menos aptos, bem se afogarão ou no máximo ficarão ilhados na miséria.

E sempre haverá novos departamentos acadêmicos, novos centros de pensamento conservador, como a Hayek Society na London School os Economics, ou a Mont Pelerin Society, o Institute os Economic Affairs, o Institute Ludwig von Mises, para dar-lhes nova roupagem e nova vida, sem falar nos inúmeros “formadores de opinião” dispersos mas unitários pela mídia afora e os incontáveis tecno-burocratas formados nas idéias do liberalismo despregado que tomou conta do pensamento universal desde a queda do muro de Berlim.

Em 1843, quando da fundação do prestigioso (e com razão) The Economist, na Grã-Bretanha, dizia o ideário desta folha lutar em favor da “defesa do livre-comércio, do internacionalismo e da mínima interferência do governo, especialmente nos negócios de mercado”. Isso, portanto, vem de longa data. O período dominado pelas idéias como as de Keynes foi quase uma exceção, não a regra. É claro que os Estados nacionais sempre interferiram na vida econômica e em muitas ocasiões instituíram o seu campo. Mas que “regulamentação” havia ao tempo das grandes navegações, que não fosse a das armadas e dos canhões? Que outra lógica predominou ao longo dos séculos, que não fosse a de Tordesilhas, ou da divisão do mundo entre os poderosos, e entre os poderosos interesses em jogo? Houve sim tentativas de regulamentação, da qual a mais ampla provavelmente foi a baseada em idéias como as de Keynes, mas o contexto imediato era inteiramente outro em relação ao de hoje, com a Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial e o capitalismo ameaçado pelo comunismo florescente e efervescente de então.

O sistema capitalista (não apenas a organização econômica, mas a organização de idéias e de práticas políticas também) provou ter uma vitalidade espantosa. Não apenas sobreviveu a suas próprias crises, como derreteu (mais do que derrotou) e engoliu o feudalismo, devastou e reorganizou a vida e a história em quatro continentes conquistados, e depois sim, derrotou a alternativa comunista no século XX. Que se classifique essa alternativa comunista como se quiser: real, falsa, farsa, capitalismo de Estado, etc. Ela perdeu, e o capitalismo triunfou. E dentro do capitalismo, isso equivaleu ao triunfo de um certo capitalismo, este que aí está, desregulado e desregulador, demolidor e reconstrutor, desregrado mas rigoroso nas penas aos incautos, velhos, desvalidos, fracos, os que diante dele viram os etcéteras da história.

E há muita gente, um exército, que lucra com esta crise, com suas raízes e desdobramentos. Isso é algo de que não se fala muito. É certo que perdeu o endividado comprador de uma casa que se desvalorizou e devedor de uma hipoteca que não pode pagar. É certo que o pequeno ou médio investidor que confiou suas reservas a uma instituição financeira para multiplica-las rapidamente está vendo essa poupança se evaporar na ciranda global. A empresa que se endividou com a compra de insumos ou captação de crédito em dólares também sai perdendo, junto com seus trabalhadores e acionistas.

Ao mesmo tempo é certo que quem primeiro tomou a hipoteca do comprador e depois revendeu seu título quando este ainda estava valorizado, este saiu ganhando. É certo que o investidor das bolsas-líderes do mundo que retoma seus capitais investidos nas bolsas do terceiro mundo, está repartindo ou compensando seus prejuízos. E repartir ou compensar prejuízos em detrimento de outros também é uma forma de sair ganhando. As instituições que compram as carteiras de outras que ficaram insolventes também saem ganhando, pois além de adquirirem controle sobre uma fatia maior do mercado de capitais e conexos, eliminando em parte a concorrência, recebem insumos de dinheiro público e garantias de governos para assim procederem. Quem faz a intermediação dessas operações todas também sai ganhando de certa forma. 

É mais ou menos isso que quer dizer a expressão “o capital sairá mais concentrado (e, portanto, mais revigorado) dessa crise financeira”. Se alguém perde, alguém sai ganhando: talvez por isso mesmo o capitalismo seja tão difícil de combater, como o vampiro dos filmes. Sem sair do lugar, mas deslocando a tudo e a todos, ele cria o fetiche do movimento, da mudança, e da possibilidade, secretamente alimentada, de que na próxima volta do parafuso (parafraseando Henry James) sejamos nós a ganhar e outros a perder.

Portanto, companheiras e companheiros, a luta continua. A batalha ideológica prossegue, e agora num terreno longe de mais fácil, mais difícil. Épocas de crise costumam semear cupins no campo das idéias: montículos pequenos, de curto alcance, mas empedernidos, com a força defensiva dos piores preconceitos.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

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