quarta-feira, 30 de maio de 2012

IANNI: NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO


CRÕTICA MARXISTA  ï 111
Neoliberalismo
e neofascismo
DOSSI 112  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
Neoliberalismo e
nazi-fascismo
OCT£VIO IANNI*
Sob o neoliberalismo, recriam-se as condiÁıes e os ingredientes do
nazifascimo. A despeito de se apresentarem como guardi„es e arautos da
d e m o c r a c i a ,   a f i r m a m   e   r e a f i r m a m   o   p r e d o m Ì n i o   d a   e c o n o m i a ,
produtividade, competitividade, lucratividade e racionalidade instrumental.
Identificam cart„o de crÈdito e consumismo com cidadania, concentraÁ„o
d o   c a p i t a l   c o m   p r o g r e s s o ,   m u l t i p l i c a Á „ o   d e   c o r p o r a Á ı e s   c o m
c o s m o p o l i t i s m o ,   d e s t e r r i t o r i a l i z a Á „ o   d a s   f o r Á a s   p r o d u t i v a s   c o m
ocidentalizaÁ„o do mundo, disneyl‚ndia global com o fim da histÛria. …
evidente o predomÌnio da lÛgica do capital em praticamente todas as esferas
da vida social.  Sob v·rios aspectos, o neoliberalismo implica a crescente
administraÁ„o das atividades e idÈias de indivÌduos e coletividade. Algo
que se desenvolve com o fascismo e o nazismo, nas dÈcada de vinte, trinta
e quarenta, continua a desenvolver-se no curso da Guerra Fria e subsiste
depois desta. De modo difuso ou organizado, incipiente ou evidente, s„o
diversos os ingredientes nazi-fascistas presentes no jogo das forÁas sociais
que se desenvolvem com a globalizaÁ„o neoliberal, pelo alto.
O pr edomÌnio do neol ibe r a l i smo,   como pr · t i c a   e   ideologi a ,   l eva
consigo n„o sÛ uma guerra sem fim contra o socialismo, mas tambÈm
contra a social-democracia. Manteve e mantÈm uma campanha inexor·vel
contra tudo o que possa ser ou parecer ìsocialî, de modo a priorizar tudo
o que possa ser ou parecer ìeconÙmicoî. Em lugar do planejamento, o
mercado; em substituiÁ„o ao coletivismo, o individualismo; em vez de
socialismo ou social-democracia, o capitalismo; mas sempre preservando
e aperfeiÁoando o planejamento das corporaÁıes transnacionais e das
o r g a n i z a Á ı e s   m u l t i l a t e r a i s ,   i n c l u s i v e   p a r a   f a z e r   f a c e   ‡ s   c r i s e s   d o
capitalismo. Essa j· era uma linha mestra de atuaÁ„o do liberalismo no
sÈculo XIX dezenove e boa parte do atual. Essa tem sido e continua a ser
a linha mestra do neoliberalismo, durante e depois da Guerra Fria. A
globalizaÁ„o de que se fala em todo o mundo significa principalmente
globalizaÁ„o do capitalismo, mas de um capitalismo no qual predomina o
* Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp.CRÕTICA MARXISTA  ï 113
neoliberalismo, sempre combatendo duramente tudo o que È social tanto
no socialismo como na social-democracia.
De acordo com a ideologia e pr·tica do neoliberalismo, trata-se de
alterar h·bitos, atitudes, expectativas, procedimentos, instituiÁıes e ideais,
de modo a abrir ao m·ximo os espaÁos para o mercado, a iniciativa privada,
a empresa, a corporaÁ„o e o conglomerado. Deixar que os ìfatores da
produÁ„oî desenvolvam-se livre e abertamente, alÈm dos territÛrios e
fronteiras, de tal maneira que o florescimento do capitalismo propicie o
florescimento da ìliberdadeî. Tudo deve ser condicionado ‡ din‚mica da
economia, do mercado, dos fatores da produÁ„o, da livre iniciativa, da
corporaÁ„o, da acumulaÁ„o, da reproduÁ„o ampliada do capital, de tal
modo que tudo o que possa ser social, polÌtico e cultural seja visto como
encadeado, influenciado ou determinado pela din‚mica da economia.
1
Essa tem sido e continua a ser a f·brica de tensıes, fragmentaÁıes e
contradiÁıes, na qual se produzem e reproduzem os grupos e as classes
subalternos, as subclasses, o desemprego estrutural, o pauperismo e a
lumpenizaÁ„o. DaÌ as reivindicaÁıes, os protestos e as lutas sociais, com
freq¸Íncia mesclados de etnicismos, xenofobias, racismos, sexismos,
f u n d a m e n t a l i s m o s   e   o u t r a s   e x p r e s s ı e s   d a s   d e s i g u a l d a d e s   s o c i a i s
multiplicadas pelo mundo afora.
Simultaneamente, essa tem sido e continua a ser a f·brica na qual se
produzem as ideologias e as pr·ticas nazi-fascistas. A mesma guerra do
neoliberalismo contra a social-democracia e o socialismo, agravando e
generalizando as tensıes, contradiÁıes e lutas sociais, favorece a fabricaÁ„o
e a generalizaÁ„o de ideologias, organizaÁıes e pr·ticas nazi-fascistas.
A cultura nazi-fascista n„o pode ser vista como algo exclusivo da
Alemanha de Hitler, da It·lia de Mussolini e do Jap„o de Hiroito. Revelouse tambÈm na £ustria, FranÁa, Inglaterra, Espanha, Portugal, ressoando
inclusive em paÌses latino-americanos, asi·ticos e africanos. Formou-se
em  uma   c o n j u n t u r a  mu n d i a l   d e   c r i s e   s o c i a l   d e   amp l a   e n v e r g a d u r a ,
compreendendo a economia, a polÌtica e a cultura, no curso da dÈcada de
20 e continuando nas dÈcadas posteriores. Foi tambÈm uma reaÁ„o ao
ascenso da revoluÁ„o social organizada com base em idÈias socialistas,
comuni s t a s  ou ma rxi s t a s .  Sob  c e r to  a spe c to,   a  vi tÛr i a  da   r evoluÁ „o
bolchevique na R˙ssia e as explosıes revolucion·rias na Alemanha, It·lia
e outras naÁıes, dando continuidade ‡ guerra civil j· embutida na Primeira
G u e r r a   M u n d i a l   ( 1 9 1 4 - 1 8 ) ,   t u d o   i s s o   p r o p i c i o u   a   o r g a n i z a Á „ o   e   a
dinamizaÁ„o de forÁas sociais conservadoras, reacion·rias, fascistas e
nazistas em diferentes paÌses.
1. Milton Friedman, Capitalismo e liberdade, Abril Cultural, S„o Paulo, 1984; Friedrich A. Hayek,
O caminho da servid„o, 2™ ediÁ„o, Editora Globo, Porto Alegre, 1977.114  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
Sob v· r ios   a spe c tos ,   a  Segunda  Gue r r a  Mundi a l   (1939-45)  n„o  È
apenas uma decorrÍncia da grande crise econÙmica mundial iniciada com
o  crash da Bolsa de Nova York em 1929. … tambÈm o produto do agravamento das tensıes e contradiÁıes entre naÁıes imperialistas, ou com
vocaÁ„o imperialista, bem como de tensıes e contradiÁıes de classes em
‚mbito internacional. Nesse sentido È que a Guerra Civil Espanhola (1936-
39) pode ser vista como a eclos„o de uma vasta guerra civil mundial,
atravessada por guerras de naÁıes. Uma guerra civil desdobrando-se pelas
dÈcadas seguintes, compreendendo a Guerra Fria (1946-89).
Sim, È possÌvel dizer que o nazi-fascismo desenvolve-se pelo mundo afora
desde a Primeira Guerra Mundial. Com altos e baixos, transforma-se em uma
ativa e agressiva cultura polÌtica, envolvendo os interesses dos grupos e classes
ou blocos de poder dominantes, em geral mobilizando setores sociais mÈdios
e, em certos casos, tambÈm oper·rios e camponeses. Tem sido simult ane ament e :   r egime  pol Ì t i co,   cul tur a  pol Ì t i c a ,   t È cni c a  de   conqui s t a   e
manutenÁ„o do poder, modo de organizaÁ„o e mobilizaÁ„o de setores
subalternos e mitos racistas de eugenia ou purificaÁ„o racial. No caso da
Alemanha nazista, levava consigo o mito do arianismo, da raÁa superior,
eleita, cumprindo sua ìmiss„o civilizatÛriaî em povos e naÁıes aliados,
cooptados ou conquistados. Algo semelhante irrompe aqui e acol· em
diferentes paÌses, no curso do sÈculo XX. Em distintas gradaÁıes, devido ‡s
peculiaridades socioculturais, econÙmico-polÌticas e histÛricas de cada paÌs,
o nazi-fascismo tem sido uma corrente polÌtica mais ou menos presente e
ativa em diversas partes do mundo. Pode ser visto como tendÍncia sempre
presente, umas vezes ativa e outras subjacente, em distintas sociedades de
classe, burguesas, capitalistas. Ainda que os grupos e classes ou blocos de
pode r  dominant e  ne s s a s   soc i edade s   com  f r eq¸Ínc i a   a f i rmem o  s eu
compromisso neoliberal com a democracia, a liberdade, o livre comÈrcio e o
mercado, a verdade È que a sua ìreligi„oî tem sido o nazi-fascismo. Marx e
Engels disseram, no sÈculo dezenove, que o bonapartismo era a verdadeira
ìreligi„oî da burguesia. No sÈculo vinte, talvez se possa dizer que o nazifascismo tem sido ao menos uma das religiıes das classes, grupos ou blocos
de poder dominantes.
S„o freq¸entes os surtos de nazi-fascismo no sÈculo XX, em diferentes
partes do mundo. Sob a Guerra Fria, foi amplamente cultivado, propagado
e   apl i c ado,  pr inc ipa lment e  pe los  gove rnant e s  nor t e - ame r i c anos ,  nos
de s envolvimentos  da   sua   ìdiploma c i a   tot a l î .  Enquanto uma   cont r a -
revoluÁ„o mundial permanente, a Guerra Fria apoiou-se continuamente
nas tÈcnicas polÌticas de tipo nazi-fascista. Sob v·rios aspectos, a Guerra
Fria foi uma Època de polarizaÁıes ideolÛgicas radicais, maniqueÌstas,
pos t a   em pr · t i c a  pe los  gove rnant e s  dos  Es t ados  Unidos   e  de  pa Ì s e s
europeus; e secundada pelos governantes da Uni„o SoviÈtica. Uma guerra
na  qua l  os  Es t ados  Unidos ,   a  Europa  Oc ident a l   e  o  J ap„o  a c aba r am
vencendo a Uni„o SoviÈtica e provocando a debacle do mundo socialista.CRÕTICA MARXISTA  ï 115
Esse o contexto em que os governantes dos Estados Unidos dedicamse a organizar e promover a desestabilizaÁ„o de governos, os golpes de
Estado, os bloqueios econÙmicos. Tanto se protegem e sustentam tiranos
como se criminalizam organizaÁıes e manifestaÁıes de grupos e classes
s u b a l t e r n o s ;   t a n t o   s e   i n c e n t i v a   a   m i l i t a r i z a Á „ o   d o   p o d e r   p o l Ì t i c o
governamental como se promovem os grupos paramilitares clandestinos
destinados a operaÁ„o de terrorismo polÌtico.
A ìdiplomacia totalî desenvolvida pelos Estados Unidos durante a
Guerra Fria compreendia a criaÁ„o, recriaÁ„o e difus„o de ingredientes
nazi-fascistas. S„o ingredientes presentes n„o somente na atuaÁ„o dos
governos norte-americanos no que se chamou de Terceiro Mundo, mas
tambÈm no prÛprio interior dos Estados Unidos. O macarthismo dos anos
50  e  60  r eve l a - s e  ni t idament e  uma  ve r s „o nor t e - ame r i c ana  de  na z i -
fascismo. Isto È, a mesma guerra ideolÛgica montada contra a Uni„o
SoviÈtica e as revoluÁıes nacionais e sociais nos paÌses do Terceiro Mundo,
germinou no interior da sociedade norte-americana a intoler‚ncia e o
fundamentalismo, ou a satanizaÁ„o de outras formas de organizaÁ„o da
vida e trabalho, tanto quanto de modos de ser e pensar.
2
Mas essa cultura continua a germinar apÛs o tÈrmino da Guerra Fria; e
manifesta-se em diversas sociedades, inclusive do ex-Primeiro Mundo.
Na Època em que se intensificam e generalizam os processos e as estruturas
d a   g l o b a l i z a Á „ o ,   c omp r e e n d e n d o  mi g r a Á ı e s ,   d e s emp r e g o   e s t r u t u r a l ,
xenofobias, etnicismos, racismos e fundamentalismos religiosos e culturais,
reativam-se as manifestaÁıes nazi-fascistas nos Estados Unidos, Alemanha,
FranÁa e outras naÁıes.
O capitalismo global n„o fermenta apenas o neoliberalismo, fermenta
tambÈm o nazi-fascismo. O nazi-fascismo pode ser visto como um produto
extremo e exacerbado das mesmas forÁas sociais predominantes na f·brica
da sociedade mundial administrada em moldes neoliberais. Uma f·brica
na qual se fabricam e refabricam desigualdades, tensıes e contradiÁıes
atravessando todo o edifÌcio.
O neoliberalismo parece radicalizar o ìdesencadeamento do mundoî,
m a s   d e s e n v o l v e n d o   p r i n c i p a l m e n t e   a s   p r · t i c a s   e   a s   i d È i a s   m a i s
caracterÌsticas da ìraz„o instrumentalî. Muito do que s„o as formas de
sociabilidade em todos os nÌveis e em ‚mbito local, nacional, regional e
m u n d i a l   t e n d e   a   s e r   e q u a c i o n a d o   e m   t e r m o s   t e c n o c r · t i c o s .   S o b   o
neoliberalismo, como pr·tica e ideologia desenvolvem-se muitÌssimo, as
2. Lillian Hellman, A caÁa ‡s bruxas, de Tonie Thonson, Livraria Francisco Alves Editora, Rio de
Janeiro, 1981; Noam Chomsky e Edward S. Herman,  Banhos de sangue, trad. de Maria do
Carmo Pizarro, Difel, S„o Paulo, 1976; Martin Walker,  The Cold War, Vintage, Londres, 1993;
David Horowitz,  From Yalta to Vietnam, Pilican Book, Londres, 1971; Richard J. Barnet,
Intervention and revolution, Meridian Books, Nova York, 1968.116  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
t È c n i c a s   d e   o r g a n i z a Á „ o ,   p r o d u Á „ o ,   a d m i n i s t r a Á „ o ,   i n f o r m a Á „ o ,
comunicaÁ„o e controle das atividades sociais em geral, compreendendo
a economia, a polÌtica e a cultura, em quase tudo È material e espiritual,
o u   r e a l   e   i m a g i n · r i o .   O s   p r i n c Ì p i o s   d a   e f i c · c i a ,   p r o d u t i v i d a d e ,
competitividade e lucratividade, lado a lado com a racionalizaÁ„o das
instituiÁıes, organizaÁıes, empresas e corporaÁıes p˙blicas e privadas,
nacionais e transnacionais, tendem a generalizar-se e a predominar. As
tecnologias de todos os tipos, das mec‚nicas ‡s eletrÙnicas, das reais ‡s
virtuais, multiplicam-se em escala acelerada, influenciando a produÁ„o,
comunicaÁ„o, informaÁ„o e controle. Aos poucos, tudo parece organizado
e em movimento, em ‚mbito mundial, como uma vasta e complexa teia
de redes atravessando as coisas, as gentes e as idÈias.
3
O mundo neoliberal tende a ser n„o sÛ um mundo sistÍmico mas
tambÈm tecnocr·tico; mesmo porque ambos fundam-se na mesma raz„o
instrumental. Sendo assim, est· composto o ambiente e o cen·rio das
o r g a n i z a Á ı e s ,   r e d e s ,   i n t e r n e t s  e   o u t r a s  mo d a l i d a d e s   d e   a r t i c u l a Á „ o ,
agilizaÁ„o, administraÁ„o, produÁ„o, controle e mando que garantem a
vigÍncia e o predomÌnio das associaÁıes, blocos ou estruturas mundiais
de  pode r .  Aos  poucos ,  os   ìprogr e s sos î  da s   t e cnologi a s  de   todo  t ipo
garantem a vigÍncia, o predomÌnio e a abrangÍncia de formas autorit·rias,
autocr·ticas ou simplesmente totalit·rias de gest„o das formas de produÁ„o,
circulaÁ„o, troca e consumo, em ‚mbito local, nacional, regional e mundial.
Uma parte importante da cultura nazi-fascista aparece na ind˙stria
cultural. O modo pelo qual essa ind˙stria lida com os fatos e os elementos
que os compıem, com freq¸Íncia implica na exacerbaÁ„o da violÍncia,
em detrimento de outros significados tambÈm fundamentais dos mesmos
f a t o s ,   a i n d a   q u e   b r u t a i s .   S e n d o   q u e   e s s a   e x a c e r b a Á „ o   d e   a s p e c t o s
ì s u r p r e e n d e n t e s î ,   ì c h o c a n t e s î ,   ì b r u t a i s î   o u   ì v i o l e n t o s î   t e m   s i d o
enfatizada pela manipulaÁ„o da imagem. A imagem, uma forÁa excepcional
de comunicaÁ„o, tem sido exacerbada ou hipertrofiada pela ind˙stria
cultural, de modo a causar impacto, desafiar as emoÁıes de espectadores
e audiÍncias. Isso È o que se pode observar em filmes, vÌdeos, reportagens,
n o v e l a s ,   p r o g r ama s   d e   a u d i t Û r i o .  O  a p e l o   a   c e n a s   s u r p r e e n d e n t e s   e
impactantes logo traz consigo cenas chocantes ou brutais. Ocorre uma
espÈcie de estetizaÁ„o da violÍncia. S„o cenas ou seq¸Íncias inspiradas
em  f a tos  ou  f i c Áıe s ,  por  me io dos  qua i s   È   exa c e rbada   a  brut a l idade
colorida, sonora, pl·stica, multimÌdia; tudo altamente estetizado.
4
3. Manuel Castells,  The rise of the network society,  Blackwell Publishers, Cambridge, 1996.
4. Win Wenders, Emotion pictures, EdiÁıes 70, Lisboa, 1989; Cynthia Schneider e Brian Wallis
(Organizadores), Global television, Wedge Press, Cambridge, Mass., 1988; Wilson Bryan Key,
A era da manipulaÁ„o, trad. de Iara Biderman, Scritta Editorial, S„o Paulo, 1993.CRÕTICA MARXISTA  ï 117
Nesse sentido È que a ind˙stria cultural tem sido, tambÈm, uma ativa
f·brica da cultura nazi-fascista. Com freq¸Íncia prioriza, enfatiza ou
exacerba uma dimens„o dos fatos, do que se pode considerar como um
registro de acontecimentos, mas acentuando apenas, ou principalmente,
um aspecto, precisamente o que se supıe como espetacular ou o que se
fabrica como espetacular. AÌ pode florescer uma parte importante da cultura
nazi-fascista, o culto da violÍncia, alimentando a subjetividade de leitores,
espectadores e audiÍncias em todo o mundo.
E m   e s c a l a   c r e s c e n t e ,   a p l i c a m - s e   c o n h e c i m e n t o s   c i e n t Ì f i c o s   n a
administraÁ„o das formas de sociabilidade e de comportamento, assim
como no jogo de forÁas sociais. Aqueles que detÍm os instrumentos de
poder, n„o sÛ econÙmicos e polÌticos, ou tÈcnicos e administrativos, mas
tambÈm culturais, dedicam-se a aprimorar e desenvolver as mais diversas
t È c n i c a s   s o c i a i s ,   d e  mo d o   a   a p r imo r a r   e   d e s e n v o l v e r   a   p r o d u Á „ o   e
r e p r o d u Á „ o   d a   s o c i e d a d e ,   em  t o d o s   o s   s e u s   n Ì v e i s .   S „ o   t È c n i c a s   d e
produÁ„o e reproduÁ„o que operam, simultaneamente, como tÈcnicas de
controle, administraÁ„o, tutela, manipulaÁ„o, regulaÁ„o, de conformidade
com o jogo de forÁas sociais dominantes, presentes e ativas.
A luz do que aprendemos ultimamente, tornou-se evidente que o controle das
atitudes divergentes pela repress„o, no final de contas, È menos eficaz do que o
controle pelo reforÁamento das atitudes de satisfaÁ„o por meio de recompensas.
No conjunto, enquanto tÈcnica de governo, o terror È menos eficaz do que a
manipulaÁ„o n„o violenta do meio, dos pensamentos e dos sentimentos do
indivÌduo.
5
… assim que se d· a dr·stica e brutal, ou paulatina e sutil, metamorfose
das tÈcnicas de organizaÁ„o, produÁ„o e administraÁ„o, em tÈcnicas de
dominaÁ„o e apropriaÁ„o, compreendendo n„o sÛ a economia e a polÌtica,
mas tambÈm a cultura, em geral mobilizando conhecimentos cientÌficos
d i v e r s o s   t r a n s f o r m a d o s   e m   t È c n i c a s   e   t e c n o l o g i a s   q u e   p a r e c e m
organizatÛrias, produtivas e administrativas.
Chegamos ‡ convicÁ„o de que a sociedade se desenvolver· no sentido de um
mundo administrativo totalitariamente. Que tudo ser· regulado, tudo!... Ent„o
s e r ·  pos s Ìve l   r egul a r - s e   tudo  automa t i c ament e ,   s e j a  quando  s e   t r a t a  da
administraÁ„o do Estado, seja quando se trata da regulamentaÁ„o do tr·fico ou
da regulamentaÁ„o do consumo.
6
5. Aldous Huxley, Retour au meilleur des mondes, Pocket nº 1645, Paris, 1996, p. 11. Citado por
Ignacio Romanet, ìLíidÈal dÈmocratique dÈvoyÈî,  Le Monde Diplomatique,  Paris, maio de
1997, p. 11.
6. Max Horkheimer,  Sociedad en transiciÛn  (Estudios de Filosofia Social), Ediciones Peninsula,
Barcelona, 1976, cap. 5, ìLa teoria critica, ayer y hoyî, p. 59. Consultar tambÈm: Herbert
Marcuse, A ideologia da sociedade industrial,  trad. de Giasone Rebua, Zahar Editores, Rio de
Janeiro, 1967.118  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
N a   m e d i d a   e m   q u e   s e   d e s e n v o l v e   o   c a p i t a l i s m o ,   i n t e n s i v a   e
extensivamente, desenvolvem-se todos os tipos de tecnologias mec‚nicas
e eletrÙnicas, organizatÛrias e sociais, produtivas e virtuais, destinadas a
de s envolve r   a  produÁ „o,   come r c i a l i z a Á „o  e   consumo,   t anto quanto  a
administraÁ„o, a regulaÁ„o e o controle, em todos os setores da vida social,
em ‚mbito nacional e mundial.
Est· em curso o processo de ìdesencantamento do mundoî, mas com
base na intensificaÁ„o e generalizaÁ„o de pr·ticas e idÈias inspiradas na
r a z „ o   i n s t r u m e n t a l ;   t r a d u z i d a s   e m   p r a g m a t i s m o ,   r a c i o n a l i z a Á „ o ,
modernizaÁ„o, etc. Nos termos em que se realiza, essa racionalidade
ape r f e i Áoa ,   int ens i f i c a   e  gene r a l i z a  os  de s envolvimentos  da s   for Á a s
produtivas, compreendendo o capital, a tecnologia, a forÁa de trabalho, a
divi s „o do  t r aba lho  soc i a l ,  o me r c ado,  o pl ane j amento  e   a  viol Ínc i a
organizada e concentrada. Simultaneamente, expandem-se as tecnologias
publicit·rias e a ind˙stria cultural, esferas nas quais combinam-se muitos
dos   e l ementos  ma t e r i a i s   e   cul tur a i s   cons t i tut ivos  da   soc i abi l idade   e
racionalidade, produtiva e lucratividade, consumismo e cidadania, ou
felicidade e humanidade, prÛprios das pr·ticas e ideais do neoliberalismo.
Por dentro desse mundo sistÍmico, governado principalmente pela
r a z „o  ins t rument a l  ope r ada   s egundo os   int e r e s s e s  da s  organi z a Áıe s ,
c o r p o r a Á ı e s ,   e s t r u t u r a s   o u   b l o c o s   d e   p o d e r   c o m   o s   q u a i s   s e   d ·   a
globalizaÁ„o pelo alto, por dentro desse mundo sistÍmico multiplicam-se
e  gene r a l i z am- s e   a s  de s igua ldade s   e   intol e r ‚nc i a s  de   todo os   t ipos .
Desenvolvem-se fundamentalismos religiosos, polÌticos e culturais, por
m e i o   d o s   q u a i s   m a n i f e s t a m - s e   o   e u r o p e Ì s m o ,   o   a m e r i c a n i s m o ,   o
cristianismo e o ocidentalismo, apresentados como diferentes e superiores
‡s formas socioculturais asi·ticas, africanas e latino-americanas.
Satanizam-se os ìoutrosî povos, compreendendo tribos e naÁıes,
culturas e civilizaÁıes. Criminalizam-se indivÌduos e coletividades, ou
povos, tribos e naÁıes, de modo a segreg·-los, confin·-los e domin·-los;
sempre em nome da modernizaÁ„o, ocidentalizaÁ„o e cristianizaÁ„o, em
geral colaborando com o florescimento e a express„o do capitalismo.
7
Por dentro desse mundo sistÍmico, germinam as desigualdades e os
antagonismos, atravessando tribos, naÁıes e nacionalidades, territÛrios e
fronteiras, continentes, ilhas e arquipÈlagos. O mundo todo revela-se
atravessado pelo desemprego estrutural, as subclasses, o pauperÌsmo, a
lumpenizaÁ„o, a xenofobia, o etnicismo, o racismo, o fundamentalismo,
o terrorismo de estado, a criminalizaÁ„o de setores sociais subalternos, a
satanizaÁ„o dos ìoutrosî. Simultaneamente, esses fenÙmenos manifestam-
7. Samuel P. Huntington, O choque de civilizaÁıes (e a recomposiÁ„o da ordem mundial), trad.
de M. H. C. CÙrtes, Objetiva, Rio de Janeiro, 1997; Zbigniew Brzezinski, Out of control (Global
turmoilon the eve of the 21st century), A Touchstone Book, Nova York, 1995.CRÕTICA MARXISTA  ï 119
s e   em  t o d a s   a s   p a r t e s   d o  mu n d o ,   n a s   s o c i e d a d e s   s u b a l t e r n a s   e   n a s
dominantes, perifÈricas e centrais, ao Sul e ao Norte. O que se apresentava
imaginariamente como distante das e alheios ‡s naÁıes dominantes, como
se estas fossem naturalmente imunes, logo se revela geral e mundial, j·
que s„o produtos da mesma f·brica global.
Lancemos um olhar sobre o mapa-mundi. Podemos localizar as guerras em regiıes
longÌnqua s ,  pr inc ipa lment e  no Te r c e i ro Mundo.  Fa l amos  de   subde s envolvimento, anacronismo, fundamentalismo. Parece-nos que a incompreensÌvel
luta transcorre a grande dist‚ncia. Mas isso È engano. H· muito que a guerra civil
penetrou nas metrÛpoles. Suas met·teses pertencem ao cotidiano das grandes
cidades, n„o sÛ de Lima e Johannesburgo, de Bombaim e Rio de Janeiro, mas de
Paris e Berlim, Detroit e Birmingham, Mil„o e Hamburgo. Dela n„o participam
apenas terroristas e agentes secretos, mafiosos e skinheads, traficantes de drogas
e esquadrıes da morte, neonazistas e seguranÁa, mas tambÈm cidad„os discretos
que ‡ noite se transformam em  hooligans, incendi·rios, dementes violentos e
serial killers. Como nas guerras africanas, esses seres mutantes s„o cada vez mais
jovens. Enganamo-nos em acreditar que vivemos em paz sÛ porque podemos ir ‡
padaria sem que sejamos atingidos pelos disparos de um franco-atirador. A guerra
civil n„o vem de fora; n„o È um vÌrus adquirido, mas um processo endÛgeno. (...)
Em nÌvel mundial trabalha-se no fortalecimento de fronteiras contra os b·rbaros.
Mas no interior das metrÛpoles formam-se tambÈm arquipÈlagos de seguranÁa
rigorosamente guardados. Nas grandes cidades americanas, africanas e asi·ticas
j· existem h· tempos os  bunkers dos felizardos, cercados por altos muros e
arame farpado. ¿s vezes s„o bairros inteiros, nos quais se pode entrar apenas
com permissıes especiais. A passagem È controlada por barreiras, c‚maras
eletrÙnicas e c„es treinados. Guardas armados de metralhadoras complementam
de suas torres a seguranÁa da regi„o. O paralelo com os campos de concentraÁ„o
È evidente, com apenas a diferenÁa de que aqui È o mundo exterior que È visto
como zona potencial de extermÌnio. Os privilegiados pagam pelo luxo com o
total isolamento: eles se tornaram presas de sua prÛpria seguranÁa.
8
Em diferentes segmentos da sociedade global, o nazi-fascismo tem
sido intermitente, difuso, espor·dico e evidente. H· organizaÁıes, partidos
p o l Ì t i c o s   e  mo v ime n t o s   s o c i a i s   n a z i - f a s c i s t a s   n o s   E s t a d o s  Un i d o s ,
Alemanha, FranÁa e outras naÁıes ocidentais ou ocidentalizadas. TambÈm
no Jap„o, CorÈia do Sul e IndonÈsia tÍm-se manifestado pr·ticas e idÈias
desse tipo. Na mesma medida que a globalizaÁ„o do capitalismo sacode
os territÛrios e as fronteiras, abalando simultaneamente os quadros sociais
e mentais de referÍncia, nessa mesma medida a globalizaÁ„o provoca ou
mesmo facilita ressurgÍncias. S„o localismos e regionalismos de todos os
8. Hans Magnus Enzansberger, Guerra civil, trad. de Marcos Branda Lacerda e SÈrgio Flaksman,
Companhia das Letras, S„o Paulo, 1995, p. 15 e 40. Consultar tambÈm: Noam Chomsky, Novas
e velhas ordens mundiais,  trad. de Paulo Roberto Coutinho, Scritta, S„o Paulo, 1996; ìDoctors
without bordersî, World in crisis (The politics of survival at the end of the 20th century), Routledge,
Londres, 1997.120  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
tipos que se manifestam, juntamente com racismo e fundamentalismo ou
metamorfoses de darwnismos sociais e arianismos.
Esse È o clima no qual se desenvolve todo um vasto e sofisticado
p r o c e s s o   d e   s a t a n i z a Á „ o   d o   i s l a m i s m o .   A   p r e t e x t o   d e   c o m b a t e r   o
fundamentalismo ou integralismo, satanizam-se indivÌduos, coletividades,
povos, naÁıes e nacionalidades, em geral ·rabes ou islamizados.
O que est· em jogo, nesses casos, n„o È apenas a religi„o, mas tambÈm
ela. Est„o em jogo as bases econÙmicas desses paÌses, os seus regimes
polÌticos, as suas organizaÁıes e empresas nacionais, os seus significados
na s   c a r togr a f i a s  geopol Ì t i c a s  dos  Es t ado Unidos ,  Al emanha ,  Fr anÁ a ,
Inglaterra, Jap„o, R˙ssia e China. Para alguns desses governos e para
muitas corporaÁıes transnacionais, o que est· em causa È a reabertura de
fronteiras econÙmicas. Trata-se de contornar, acomodar, submeter ou
destruir os obst·culos socioculturais, polÌticos e econÙmicos ‡ expans„o
do capitalismo.
Esse È o contexto no qual se desenvolve a satanizaÁ„o do islamismo
em geral e do fundamentalismo em especial. E essa È uma satanizaÁ„o
que se realiza n„o somente em nome do secularismo, ou da substituiÁ„o
da religi„o pela polÌtica, como fundamento da organizaÁ„o nacional; È
uma satanizaÁ„o na qual se busca difundir o cristianismo como religi„o
mundial.
9
9. Gilles Kepel, A revanche de deus (crist„os, judeus e muÁulmanos na reconquista do mundo),
trad. de J. E. Smith Caldas, Siciliano, S„o Paulo, 1991.CRÕTICA MARXISTA  ï 121
Neoliberalismo e
neofascismo ó
Ès lo mismo pero
no Ès igual?
REGINALDO C. MORAES*
Como se sabe, o neoliberalismo n„o tem meias palavras para nomear
seus inimigos: a democracia de massas e seus perversos filhos, o Estado
de bem-estar e os sindicatos. As maldiÁıes s„o pronunciadas em nome de
valores que se pretendem apriorÌsticos e universais, de natureza Ètica e
polÌtica: esses demÙnios ameaÁam a liberdade e qualquer possibilidade
de ordem no mundo humano. Mas n„o deixam de apelar tambÈm a um
critÈrio conseq¸encialista: os juÌzos s„o igualmente fundados em supostos
critÈrios de eficiÍncia e progresso. Adotando um diagnÛstico apocalÌptico,
o novo fundamentalismo de mercado prepara uma receita salvacionista
franca e ousadamentemente conservadora: subjugar os sindicatos e impor
duras reformas econÙmicas, ìlibertandoî o capital dos controles que lhes
haviam sido impostos por duzentos anos de lutas populares.
Os principais traÁos das reformas neoliberais s„o praticamente os
mesmos em todos os cantos do planeta: redefiniÁ„o (e limitaÁ„o) das
funÁıes do Estado e de suas despesas; reduÁ„o do n˙mero de funcion·rios
das entidades p˙blicas e parap˙blicos, o que, por exemplo, impıe a revis„o
dos   s i s t ema s  pr evidenc i · r ios ,  bem  como de   toda   a   l egi s l a Á „o  soc i a l ;
desregulamentaÁ„o e privatizaÁıes, pelas quais se alega submeter serviÁos
p˙blicos ‡ vigil‚ncia saneadora da concorrÍncia. O catecismo È repetido,
mude a geografia ou a ocasi„o, e tambÈm a nÛs cabe lembr·-lo, ainda que
repetidamente. A reforma do Estado deveria transferir ao setor privado as
atividades produtivas em que este indevidamente se metera. Ao mesmo
tempo, afirma-se a infalÌvel e incorruptÌvel disciplina do mercado, sempre
superior ‡s v„s atividades regulatÛrias: diminuamos pois interferÍncia dos
pode r e s  p˙bl i cos   sobr e  os   empr e endimentos  pr ivados ,   e l iminando  a s
ìpressıes fiscaisî, apresentadas como insuport·veis e desestimuladoras,
* Professor do Departamento de CiÍncia PolÌtica da Unicamp.122  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
a s  pol Ì t i c a s   r edi s t r ibut iva s ,   t ida s   como pa t e rna l i s t a s   e  de s a s t ros a s ,   a
i n t e r f e r Í n c i a   ì a b u s i v a î   d o s   p o d e r e s   p ˙ b l i c o s   n o s   c o n t r a t o s   e n t r e
particulares (normas sobre aluguÈis, direito do trabalho e previdÍncia,
mensalidades escolares, etc.).
Paralelamente ao enfraquecimento das soberanias nacionais, elege-se
uma nova soberania, monitoradora das polÌticas nacionais, e com sede
privilegiada em Washington (ou Nova York). OMC, AMI,  fast-track, o
notici·rio econÙmico dos grandes jornais traÁam o perfil do admir·vel
mundo novo em que o capital e seus representantes polÌticos finalmente
f i c a r i a m   l i v r e s   d a   c h a n t a g e m   d o   s u f r · g i o   e   d a   ìa c c o u n t a b i l i t yî
democr·tica.
Para os trabalhadores, as mudanÁas significam autÍnticos terremotos.
Anuncia-se como benÁ„o o fim do assalariamento cl·ssico e da lÛgica
dos ìempregos permanentesî, ou melhor, daquilo que as lutas trabalhistas
haviam imposto ‡ economia polÌtica do patronato: acordos e regulamentos
protetores, sal·rios calculados automaticamente a partir de convenÁıes
col e t iva s  de t a lhada s .  Anunc i am- s e  nova s   forma s  de  organi z a Á „o do
trabalho e da empresa, livres e criativas, calcadas na gest„o e contrataÁ„o
flexÌveis, nos ajustes permanentes na duraÁ„o e na qualidade do trabalho,
no vÌnculo estrito entre remuneraÁ„o e desempenho, na individualizaÁ„o
dessas remuneraÁıes. No delicado terreno dos ìdestinos sociaisî, impıese a lÛgica de percursos profissionais n„o padronizados, os chamados
ziguezagues na histÛria de vida profissional: vocÍ nunca sabe o que vai
ser amanh„ e depois de amanh„ ó e isso È bom, muito bom para vocÍ.
O neoliberalismo econÙmico leva a uma polÌtica conservadora ó e
seus propagandistas, de Hayek a James Buchanan, jamais esconderam a
p r e t e n s „ o   d e   c o l o c a r   l i m i t e s   d r · s t i c o s   ‡ s   ì i r r e s p o n s a b i l i d a d e s î   d a
democ r a c i a  de  ma s s a s .  Te r ·   i s so  ident idade   com o  r ena s c imento de
movimentos de ultradireita, do tipo fascista? … certo que n„o existe um
f o s s o   i n t r a n s p o n Ì v e l   e n t r e   e s s a s   d o u t r i n a s   a n t i d e m o c r · t i c a s   e   o s
movimentos neofascistas recentes. … certo ainda que namoros e parcerias
exi s t i r am  a   todo momento  ent r e   e l e s .  A  e s s e   r e spe i to  È   cur ios a  uma
observaÁ„o de um crÌtico de Hayek, sobre o sucesso de seu livro contra
os ìtotalitarismosî, o Caminho da servid„o, no qual nazismo e comunismo
eram apontados como irm„os gÍmeos. O paradoxo apontado È o seguinte:
procurem ver quem s„o aqueles que mais se entusiasmam com o panfleto
supostamente antitotalit·rio de Hayek e vejam quais eram suas preferÍncias
(e milit‚ncias) polÌticas alguns anos antes, quando o nazi-fascismo ainda
p r o m e t i a   f u t u r o . . .   E x p e r i m e n t e   e s s e   m e s m o   e x e r c Ì c i o   p a r a   o   c a s o
brasileiro...
Mas, para o bem da compreens„o teÛrica e dos desafios pr·tico-polÌticos,
È preciso distinguir esses dois fenÙmenos,  que s„o efetivamente distintos.CRÕTICA MARXISTA  ï 123
Como se sabe, mas nunca È demais repetir, o ascenso do fascismo È
demarcado por uma grave crise das condiÁıes de reproduÁ„o do capital
ó e representa uma radical alteraÁ„o, pela forÁa, dessas condiÁıes e dos
impasses nelas reinantes. … correto identificar a natureza de classe do
nazi-fascismo, com a cÈlebre pergunta dos advogados: a quem interessa
o crime, afinal? Com o acrÈscimo operacional: quem financiou o executor?
Mas È preciso mais do que isso. … preciso indagar porque e como o nazifascismo se transformou em um movimento de massas.
O fascismo germina dentro de uma certa lacuna operacional, diria um
observador ìpragm·ticoî. Uma ditadura militar ou um estado policial
revelam-se insuficientes para derrotar a classe trabalhadora, atomiz·-la,
d e s t r u i n d o   s u a s   o r g a n i z a Á ı e s ,   d e smo r a l i z a n d o - a   e   c o n d e n a n d o - a   ‡
resignaÁ„o e ‡ obediÍncia. Para esse serviÁo, torna-se necess·rio um
mo v ime n t o   d e  ma s s a s ,   n o   q u a l   e x e r c e   p a p e l   d e c i s i v o   uma   p e q u e n a
burguesia atingida pela crise ó mas tambÈm as parcelas do proletariado
e  do  subprol e t a r i ado ma rgina l i z ada s  por   e s s a  me sma   c r i s e .   Inf l a Á „o,
falÍncias, desemprego, degradaÁ„o das profissıes e dos status sociais
conduzem a um desespero de massas e a um movimento freq¸entemente
povoado de reminiscÍncias ideolÛgicas, de rancor, nacionalismo e de uma
certa demagogia ... anticapitalista  ó uma demagogia voltada para formas
e spe c i f i c a s  do  c api t a l i smo,   em que   s „o  s a t ani z ados  os  usur · r ios ,  os
atravessadores, os tubarıes, os monopÛlios, o capital ocioso (mas n„o o
ancestral e mitolÛgico capital ìcriador de trabalho e de riquezaî), uma
demagogia exacerbada e ao mesmo tempo prudente, j· que n„o se volta
contra o prÛprio instituto da propriedade privada.
O Es t ado  for t e  neol ibe r a l ,   ‡   l a  Re agan-Tha t che r   ( com o not ·ve l
upgrade Pinochet), ataca sistematicamente os direitos democr·ticos e
sociais ó leis de exceÁ„o, medidas de emergÍncia (ou medidas ditas
ìprovisÛriasî), decretos antigreves, penalizaÁ„o de sindicatos, manipulaÁ„o
d a   i n f o rma Á „ o ,   s u p r ema c i a   d o   e x e c u t i v o ,   l e g i s l a Á „ o   p o r   d e c r e t o   e
suspens„o de garantias constitucionais, subtraÁ„o de decisıes econÙmicas
de grande porte ao controle p˙blico (seja pela via da privatizaÁ„o, seja
pela desregulamentaÁ„o legal). … certo que a aceitaÁ„o passiva de tais
ataques aos direitos democr·ticos torna cada vez maiores o apetite e a
confianÁa da classe dominante. Se o movimento oper·rio cede diante de
tais ataques, na primeira oportunidade ou no primeiro impasse em que
tais retaliaÁıes autorit·rias se mostrem insuficientes, um aventureiro audaz
e inteligente ó e nesse momento j· com o apoio de um movimento de
m a s s a s   e   f i n a n c i a m e n t o   d o   g r a n d e   c a p i t a l   ó   t o m a r ·   o   c e t r o   p a r a
exterminar de vez a resistÍncia.
Mas h· ainda um outro aspecto em que a evoluÁ„o do ìEstado forteî
imp l i c a d o   p e l a s   ma r k e t   o r i e n t   r e f o rms  d e   n o s s o s   n e o l i b e r a i s   p o d e
avizinhar-se do neofascismo ó ou talvez seja melhor dizer: pode  nos124  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
avizinhar do fascismo. E isto diz respeito, diretamente, aos prÛprios
resultados socioeconÙmicos de seus atos.
Das reformas neoliberais surgem, como cogumelos, suas novas elites
y u p p i e s ,  o s   n o v o s   ì emp r e e n d e d o r e s î   e   ì r e e n g e n h e i r o s î   d o  mu n d o
financeiro e gerencial,  los perfumados, como se dizia no MÈxico por
ocasi„o dos ˙ltimos terremotos econÙmicos. Ao mesmo tempo, dissolvemse, mais ou menos rapidamente, mas sempre com not·vel clareza, as bases
polÌticas do velho conservadorismo. O novo Estado forte È cada vez mais
subtraÌdo a velhas formas de  accountability ó deliberadamente, e quase
por definiÁ„o, ele È algo imune a controle social (e sobretudo eleitoral).
Junte-se a tudo isso o ingrediente da exclus„o estrutural, conduzindo
segmentos cada vez maiores da humanidade a uma situaÁ„o inst·vel e
desesperadora. Est„o criadas as condiÁıes propÌcias ao ascenso de soluÁıes
d e   e m e r g Í n c i a   q u e   d e   o u t r o   m o d o   s e r i a m   v i s t a s   c o m o   i n v i · v e i s ,
indesej·veis ou atÈ mesmo impens·veis.
Quando Hayek expÙs seu plano de reforma polÌtica e sua crÌtica ao
Estado de bem-estar, h· algumas dÈcadas, um de seus crÌticos lembrou
que aquele modelo polÌtico era de tal maneira imune ‡ crÌtica e ‡ mudanÁa
que sÛ restaria um caminho aos dissidentes (e quantos seriam, com o
tempo?): o desespero e a insurreiÁ„o. A reforma do Estado pregada pelos
neoliberais pretende criar uma espÈcie de Estado gerencial, enxuto, que
ao invÈs de assumir tarefas produtivas e de prestaÁ„o de serviÁos, monta
comitÍs e agÍncias encarregadas de controlar e contratar serviÁos prestados
por empresas privadas, justamente aquelas que teriam adquirido entidades
anteriormente estatais. Notemos que as instituiÁıes do ìEstado velhoî
eram, pelo menos em princÌpio, subordinadas ao controle de organismos
polÌticos eleitos (congresso, assemblÈias estaduais, c‚maras municipais,
etc.) ou ‡ fiscalizaÁ„o judicial dos atos e contas p˙blicas. As novas agÍncias
cont rol ador a s   s „o  ins t i tui Áıe s  ul t r apode ros a s ,  ma s  de   f a to  imune s   a
qualquer forma de controle efetivo, instituiÁıes que tendem cada vez mais
a n„o responder diante de qualquer soberania polÌtica. N„o podem ser
controladas ó mas tambÈm n„o podem (e n„o pretendem) ser legitimadas
p o r   i n s t i t u i Á ı e s   d emo c r · t i c a s   c o n v e n c i o n a i s .   E   e s s e   È   um  f a t o r   d e
instabilidade polÌtica n„o desprezÌvel.
Mas h· outro resultado inquietante. O fundamentalismo de mercado
neoliberal firma suas bases de apoio numa aposta perigosa, a aposta de
que o mercado n„o regulado produz crescimento contÌnuo, amplia as
oportunidades econÙmicas e sociais, assim como as escolhas e acessos
ao consumo. Mas o que ocorre diante da possibilidade de uma falha na
aposta? A inseguranÁa diante dos riscos e as flutuaÁıes econÙmicas do
mercado s„o seus filhos legÌtimos e esperados ó e, na mitologia neoliberal,
o sucesso depende justamente da n„o-garantia de sobrevivÍncia, uma vezCRÕTICA MARXISTA  ï 125
que È nesta que germinam (ou s„o forÁados a germinar) o empenho e a
criatividade dos empreendedores.
A falÍncia da utopia neoliberal È algo previsÌvel do ponto de vista lÛgico
e, para milhıes de seres humanos no planeta, algo j· empiricamente
constatado e vivenciado. Est· aberto o campo para movimentos polÌticos
n„o apenas n„o-liberais, mas radicalmente antiliberais. NÌveis de inseguranÁa sem precedentes s„o impostos a segmentos populacionais  de massa,
provocando terremotos na sua vida e nas suas expectativas. Lembremos os
r e sul t ados  humanos   (ou de sumanos )  da s   r e forma s   e conÙmi c a s   e  da s
reestruturaÁıes produtivas em andamento em todo o mundo. De modo
brutal, eles mostram a parcelas enormes da humanidade que elas s„o cada
vez mais ìdispens·veisî ó no limite, o mundo econÙmico pode girar sem
grandes problemas apesar da eliminaÁ„o completa de muita, muita gente.
Em  c e r t a  medida ,  pa r e c e   a t È  que  gi r a r i a  me lhor   s em  e s s e s   ì t r a s t e s î
incÙmodos, conforme alerta o pungente livro de Viviane Forrester (O horror
econÙmico, Editora Unesp, S„o Paulo, 1997).
Dur ant e  ma i s  de  um  s È culo,  movimentos  ope r · r ios ,   soc i a l i s t a s   e
d emo c r · t i c o s   h a v i am  imp o s t o   a o   c a p i t a l   r e s t r i Á ı e s   r e g u l a d o r a s   q u e
impediram a aÁ„o b·rbara do moinho sat‚nico do mercado, para usar a
express„o celebrizada pelo conhecido livro de Karl Polanyi. S„o esses
ìentravesî ‡ suposta ordem natural das coisas que a contra-revoluÁ„o
neoliberal quer eliminar. Ela prepara a emergÍncia de um mundo novo
b e m   p o u c o   a d m i r · v e l ,   s o m a n d o   a p a t i a   p o l Ì t i c a ,   d e s i l u s ı e s   e
d e smo r a l i z a Á ı e s   i d e o l Û g i c a s ,   i n s e g u r a n Á a   e c o n Ùmi c a   e   a t omi z a Á „ o
social. Como, alÈm disso, se trata de uma sociedade que pode ìdispensarî
da inclus„o social ó e da prÛpria sobrevivÍncia fÌsica ó uma parte
crescente dos seres humanos, est· pronto o caldo de cultura propÌcio ‡s
soluÁıes de desespero. E como se sabe, desespero e inseguranÁa s„o
pÈssimos conselheiros.
A polÌtica neoliberal n„o È a da mobilizaÁ„o neofascista, mas pode ser
o pavimentador dessa outra via da contra-revoluÁ„o. Apatia polÌtica e
desilusıes com as saÌdas convencionais, desmanche de tradiÁıes polÌticas,
sociais e culturais que outrora costuravam e resguardavam a sociedade,
ausÍncia de saÌdas progressistas confi·veis (elas mesmas mergulhadas na
desilus„o e na desmoralizaÁ„o) ó tudo  isso prepara o caminho para a
emergÍncia de um louco que tenha soluÁıes radicais, aquelas que parecem
ser o ˙nico ponto firme num mundo em que tudo naufraga, grito que
parece ter espÌrito num mundo sem espÌrito. O fascismo È assim, de certo
modo, um sintoma de males profundos, mas tem o cuidado de n„o se
apresentar como sintoma, mas, antes, como remÈdio ó amargo, necess·rio
e... o ˙nico que nos sobra.126  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
Para segmentos cada vez maiores da populaÁ„o, mesmo no admir·vel
P r i m e i r o   M u n d o ,   p e r f i l a - s e   n o   h o r i z o n t e   p r Û x i m o   u m a   v i d a   s e m
perspectivas e sem sonhos. Ao mesmo tempo, nos notici·rios das prateadas
antenas de TV a cabo, desfila a morte lenta e let·rgica das multidıes
descart·veis, na £frica, na Europa do Leste, na £sia ou na AmÈrica Latina,
mas tambÈm em bolsıes cada vez mais significativos dos paÌses avanÁados.
Tudo isso deveria lembrar que o desespero jamais inspirou bons conselhos.
Afinal, a manada pode discordar dessa caminhada silenciosa para o abate,
passando da letargia ‡s opÁıes histÈricas, afinal t„o ìracionaisî quanto as
anteriores.
Se a barb·rie em curso n„o tiver barrados seus empreendimentos
macabros, nas lutas polÌticas que se desdobram em cada pequeno canto
d o   p l a n e t a ,   n „ o   d e i x a r „ o   d e   s u r g i r   e s s a s   a l t e r n a t i v a s   d e s e s p e r a d a s ,
prometendo soluÁıes finais para a inseguranÁa, o risco, a precariedade da
vida e a ameaÁa de morte. Um pintor louco com um pequeno bigode s„o
apenas um homem e um bigode. AtÈ que, numa naÁ„o de humilhados e
o f e n d i d o s ,   r e c e b e   a p l a u s o s   d a  mu l t i d „ o   e   r e c u r s o s   d o s   b a n q u e i r o s ,
t r a n s f o r m a n d o - s e   i p s o   f a c t o  e m   e s t a d i s t a   e   c o n d u t o r   d e   d e s t i n o s .
Neoliberalismo, neofascismo. …s igual, pero no Ès lo mismo ó ou devemos
dizer:  Ès lo mismo pero no Ès igual?CRÕTICA MARXISTA  ï 127
Contra o
neoliberalismo ó
mas de que jeito?
WOLFGANG FRITZ HAUG*
Desde que os zapatistas designaram a Caixa de Pandora da qual se
originam tantos sofrimentos que atingem hoje a humanidade em escala
mundial, foi este nome ouvido conscientemente por muitos pela primeira
vez: neoliberalismo. Quando os zapatistas convocaram ìum encontro
i n t e r g a l · c t i c o   c o n t r a   o   n e o l i b e r a l i s m o   e   p e l a   h u m a n i d a d e î   e
encarregaram o ìGrupo-Chiapasî berlinense da realizaÁ„o do encontro
preparatÛrio europeu, os membros deste grupo ficaram espantados e atÈ
m e s m o   s u r p r e s o s   c o m   e s s e   n o m e   q u e   n „ o   l h e s   d i z i a   n a d a   ó
ì n e o l i b e r a l i smo î .   R e t r o s p e c t i v ame n t e ,   e s s e   e s p a n t o   t em  um  e f e i t o
dupl ament e   surpr e endent e .
… compreensÌvel, tanto de um ponto de vista histÛrico, quanto de um
p o n t o   d e   v i s t a   s o c i a l   e   p s i c o l Û g i c o ,   q u e   e l e s   n „ o   v i n c u l a s s e m   a o
neoliberalismo a blitzkrieg econÙmica, que praticamente extinguiu da noite
para o dia a economia da Rep˙blica Democr·tica Alem„, nem a ìterapia
de choqueî nos antigos paÌses socialistas da Europa Oriental com suas
conseq¸Íncias devastadoras. O novo mundo de guerra civil onde foi
outrora a Iugosl·via ou a Uni„o SoviÈtica parecia-lhes ter t„o pouca coisa
em  c omum  c om  o s   s e u s   p r o b l ema s ,   q u a n t o   o   c o l a p s o   d o s   p r o j e t o s
nacionais de desenvolvimento e modernizaÁ„o do Terceiro Mundo. A
solidariedade com as vÌtimas e os horrores em face do evidente absurdo
do curso do mundo vinculavam-se na esquerda, quando muito, a uma
recusa geral do ìcapitalismoî enquanto tal, sem que ela prestasse atenÁ„o
aos antagonismos internos na esfera de dominaÁ„o, que se tornou sem
fronteiras. Ou ent„o as pessoas se deleitavam com sombria satisfaÁ„o com
o pretenso ìcolapso da modernizaÁ„oî em geral.
Totalmente surpreendente nesse espanto era uma outra ausÍncia: assim
como ocorreu por todo lado na Europa Ocidental, tambÈm na Alemanha
* Professor do Instituto de Filosofia da Universidade Aberta de Berlim. Editor do periÛdico Das
Argument e autor do livro CrÌtica da estÈtica da mercadoria, publicado pela Editora da Unesp.
TraduÁ„o do alem„o por Isabel Loureiro.128  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
s e   a c umu l a r am  o s   p r o t e s t o s   d e   g r u p o s   a t i n g i d o s   p e l a   d e s t r u i Á „ o   d e
elementos do Estado social, pelas conseq¸Íncias da ìprivatizaÁ„oî e da
ìdesregulamentaÁ„oî. Nas instituiÁıes p˙blicas da EducaÁ„o e da Sa˙de,
do Esporte e da Cultura, da PrevidÍncia Social e dos Transportes, etc.
multiplicaram-se os fechamentos e as demissıes, contra as quais pequenos
grupos resistiam desesperadamente nas ruas. Professoras de jardim de
inf‚ncia protestavam junto com as m„es e as crianÁas contra o fechamento
dos jardins de inf‚ncia, bibliotec·rias protestavam contra o fechamento
das bibliotecas p˙blicas. Piscinas p˙blicas encerraram suas atividades, os
hor·rios de visita aos museus diminuÌram, ao passo que os preÁos das
entradas aumentaram. Tudo foi eliminado, n„o sÛ o que existia no presente,
mas tambÈm o que dizia respeito ao futuro, como, por exemplo, planos
de construÁıes socioculturais. Conseq¸Íncias intermin·veis decorrentes
do corte de verbas levaram ao aparecimento de uma ìterceiromundizaÁ„oî
d a s   u n i v e r s i d a d e s   ( p ˙ b l i c a s ) .  Os   e s t u d a n t e s   f i z e r am  g r e v e   c o n t r a   a
reintroduÁ„o de taxas; os metal˙rgicos, sobretudo os trabalhadores da
Daimler-Benz, contra a reduÁ„o do pagamento de sal·rio em caso de
doenÁa. Mas na Alemanha todas estas e muitas outras pequenas e grandes
aÁıes, in˙teis ou bem sucedidas, permaneceram isoladas, e os grupos
que saÌam ‡s ruas n„o se davam conta de que sofriam de maneiras diferentes
as conseq¸Íncias de uma e mesma polÌtica. A conex„o n„o se realizava
nas cabeÁas. As ·rvores escondiam a floresta.
Ant e s  dos   a l em„ e s   for am os   f r anc e s e s  que   apr ende r am  a   sol e t r a r
ìneoliberalismoî. Por algum tempo parecia que o exemplo francÍs ia
frutificar, sobretudo quando os trabalhadores da Daimler-Benz, em frente
aos portıes da f·brica, desenrolaram uma faixa em que estava escrito:
ìNÛs aprendemos francÍsî. Para desgosto do governo, os representantes
do capital entenderam a estranha ameaÁa e precipitaram a retirada, È
verdade que apenas em relaÁ„o a alguns poucos pontos nevr·lgicos, a
fim de continuar a ofensiva em relaÁ„o a outros. Entrementes algo mudou
na percepÁ„o p˙blica. Por ˙ltimo, foi o artigo de Bourdieu sobre a ìidÈia
d e   T i e t m e y e r î ,   a o   q u a l   a   ì e c o n o m i a î   ( c o m o   s „ o   d e n o m i n a d o s
neutramente os interesses capitalistas) revidou quase que imediatamente
e que despertou a opini„o p˙blica liberal de esquerda.
Contudo, o conceito de ìneoliberalismoî foi (e ainda È) posto na
s o m b r a   p e l a   p a l a v r a   d e   o r d e m   ì g l o b a l i z a Á „ o î .   P a r a   m u i t o s   e s t a   È
decididamente uma palavra que provoca terror e Ûdio. Parece-lhes mais
c o r r e t a   a   ì l u t a   c o n t r a   a   g l o b a l i z a Á „ o î   d o   q u e   v o l t a r - s e   c o n t r a   o
neoliberalismo. Os governantes assemelham-se a educadores em p‚nico,
que precisam incitar seus povos em face da ìglobalizaÁ„oî a contÌnuos
sacrifÌcios e desempenhos para que o desemprego pare de crescer e a
decadÍncia nacional cesse. Onde antes invocavam a concorrÍncia dos
ìjaponesesî, agora expıem a globalizaÁ„o como fatalidade econÙmicaCRÕTICA MARXISTA  ï 129
inevit·vel a que os governados precisam adaptar-se preventivamente. Em
contrapartida, a ìglobalizaÁ„oî È algo que parece tambÈm ìglobalizarî a
resistÍncia contra si, pois atinge n„o sÛ os pobres, mas tambÈm os povos
ricos, n„o sÛ os ìpaÌses em desenvolvimentoî, mas tambÈm os paÌses
industriais capitalistas desenvolvidos ou, pelo menos, consider·veis grupos
da populaÁ„o desses paÌses. Mas a ìglobalizaÁ„oî È dessa forma sobred e t e r m i n a d a ,   p o i s   o   p r o t e s t o   f r o n t a l   c o n t r a   e l a   s e   e n c o n t r a   ì s u b -
determinadoî e condenado ao fracasso. Trovejar contra a globalizaÁ„o È
o mesmo que ladrar para a lua. Por isso, o discurso da globalizaÁ„o tem
que ser, antes de mais nada, ìdesconstruÌdoî.
ìGlobalizaÁ„oî parece significar em primeiro lugar globalizaÁ„o do
capitalismo, no sentido da construÁ„o de um ˙nico mercado mundial
capitalista. ìA histÛria acabouî, apregoava-se a partir dos Estados Unidos
no momento do colapso do socialismo de Estado. Desde ent„o n„o h·
mais alternativa ao capitalismo, apenas concorrÍncia na partilha do mundo
pelos poderosos. A globalizaÁ„o revela-se assim, no varejo e no sentido
ocul t ador  do  t e rmo,   como  a   coe r Á „o  ìneol ibe r a l î   em  r e l a Á „o  a   e s s e
p r o c e s s o :   c omo   p o l Ì t i c a   d o   l i v r e   c omÈ r c i o   g l o b a l   n o   i n t e r e s s e   d o s
ìvencedores do mercadoî em detrimento dos ìperdedores do mercadoî.
Esta polÌtica aspira a dois outros atos complementares de destruiÁ„o
histÛrica: por um lado, leva ‡ queda dos regimes desenvolvimentistas
na c iona i s  da s   soc i edade s  pobr e s   e ,  por  out ro,   l eva   ‡  de s t rui Á „o da s
estruturas de bem-estar social das sociedades ricas. Em ambas as esferas
mundiais esta polÌtica trata de suprimir a proteÁ„o contra a concorrÍncia
de fora, de produtos no caso do ìSulî, ou de produtos e de forÁa de
trabalho no caso do ìNorteî ó no ˙ltimo caso certamente da maneira
mais horrÌvel, por meio da perseguiÁ„o ao ìtrabalhador ilegalî, ao mesmo
tempo que utiliza sua ilegalidade, tal como mostra penetrantemente o filme
El Norte, de Gregory Nava. E mais. Com o termo ìglobalizaÁ„oî entendes e   a   l u t a   q u e   o b r i g a   a   uma   n o v a   d i v i s „ o   d o   t r a b a l h o   i n t e r n a c i o n a l .
Curiosamente, o mesmo nome de ìglobalizaÁ„oî abrange igualmente a
difus„o, no mundo inteiro, de um modo de consumo padronizado de
produtos padronizados de grandes empresas transnacionais, mas tambÈm
o  e f e i to globa l  da  de s t rui Á „o do me io  ambi ent e  ou  a  propaga Á „o de
doenÁas (Aids), dependÍncia de drogas e criminalidade (M·fia). Com
esse nome È apresentada a criaÁ„o de polÌticas e instituiÁıes contra tais
pragas ìglobaisî.
E, finalmente, ser· preciso lembrar que Kostas Axelos nos anos 60
via surgir a ìÈpoca planet·riaî, ou que Henri Lefebvre, uma dÈcada mais
tarde, praticava a ìmundializaÁ„o do marxismoî, isto È, a globalizaÁ„o
do marxismo? Devemos deixar claro aqui que com a ìglobalizaÁ„oî de
um feixe de fenÙmenos lidamos com uma ambivalÍncia fundamental, tal
como, em grande avanÁo sobre a sua Època, foi esboÁada pela primeira130  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
vez h· 150 anos no Manifesto Comunista: o ìdesaparecimento dos povosî
(Verschlingung der Vˆlker) na rede do mercado mundial capitalista foi ali
r e conhe c ido  como o  t r i lho  sobr e  o qua l  o  c api t a l i smo  È   conduz ido,
simultaneamente com sua possÌvel superaÁ„o. Tais percepÁıes resistem
a o   e s p Ì r i t o   d o   t e m p o .   N a   p r e s s a   d e   s e   d e s f a z e r   d a   a m b i v a l Í n c i a
fundamental, as belas almas e as consciÍncias infelizes do presente caem,
n„o menos que antes, numa contradiÁ„o que n„o s„o capazes de suportar.
O Manifesto, ao qual se podem censurar muitas fraquezas, tem raz„o no
que se refere a esta quest„o. Portanto, n„o tem sentido lutar contra a
globalizaÁ„o; È preciso lutar para dar-lhe um sentido humano, para fazer
dela o que Gramsci denomina a ìunificaÁ„o cultural da humanidadeî.
Com o termo ìhumanidadeî n„o se est· pensando numa idÈia abstrata,
mas numa realidade praticada. Olhar para tr·s em nome da ìhumanidadeî
n„o tem sentido, mesmo que fosse para mostrar que ela nunca existiu em
t e m p o s   p r È - c a p i t a l i s t a s .   E s t a   f o r m u l a Á „ o   p o d e   s e r   i m e d i a t a m e n t e
complementada: o olhar para tr·s mostra hoje que a humanidade como
realidade pr·tica ainda est· tateando, que uma humanidade dominada
pelo capitalismo n„o È capaz de sobreviver.
… particularmente curioso que o conceito de ìneoliberalismoî diga
pouco aos alem„es, uma vez que a ideologia neoliberal se produziu aqui,
com uma   int ens idade  qua s e   r e l igios a ,  na  Unive r s idade  de  Fr iburgo.
F r i e d r i c h  Au g u s t   v o n  Ha y e k   t r a n s f e r i u   a   c o n c e p Á „ o   d a rwi n i s t a   d a
ìsobrevivÍncia do mais forteî para o plano das instituiÁıes sociais: o mais
capaz sobrevive, o mais fraco morre. Como em todo social-darwinismo,
principalmente o nazismo, n„o sÛ s„o rejeitadas mas tambÈm difamadas
como forÁas da degeneraÁ„o todas as polÌticas e instituiÁıes que impedem
tal processo de seleÁ„o. Para Hayek, os parlamentos s„o suspeitos porque
s e m p r e   p r o c u r a m   i n t e r v i r   d e   m a n e i r a   r e g u l a d o r a ,   s o c i a l i z a n t e   o u
ìhumanizadoraî no mercado. Ser· preciso lembrar que o golpe e em
seguida a ditadura militar no Chile serviram para impor uma polÌtica
econÙmica neoliberal? No inÌcio de 1990 quando a  perestroika soviÈtica
agonizava, a Komsomolskaja Prawda publicou (ìo mundo parecia de
pont a   c abe Á a î )  uma   longa   ent r evi s t a  de  dua s  p·gina s   com o gene r a l
assassino Pinochet, que em nome da polÌtica neoliberal recomendava aos
russos a receita: ì… preciso cortar o rabo do gatoî. O ìraboî eram os
sindicatos, os direitos civis, o Estado social, etc.
Mas È preciso fazer uma pausa, as coisas n„o s„o assim t„o f·ceis! Se
È falso manifestar-se contra a globalizaÁ„o, È igualmente difÌcil lutar contra
o neoliberalismo. Sem uma autocrÌtica da esquerda nas suas diversas
tendÍncias n„o È possÌvel uma crÌtica do neoliberalismo. A hegemonia da
d e s r e g u l a m e n t a Á „ o   n e o l i b e r a l   È   p o r   f i m   a   r e a Á „ o   c o n t r a   o   n „ o -
funcionamento, tanto do regulacionismo social-democrata, quanto doCRÕTICA MARXISTA  ï 131
ìmodo de produÁ„o estatalî (Lefebvre) comunista. Quando se questiona
esse ìn„o-funcionamentoî das duas diferentes formaÁıes inimigas, surge
uma   p r o b l em· t i c a   c omp l e x a :   amb a s   d u r a r am mu i t o   t emp o ,   o   q u e   È
incompreensÌvel sem investigar o ìfordismoî.
L e m b r e m o s   a p e n a s   c o m o   G r a m s c i   a n a l i s o u   a   t r a n s i Á „ o   p a r a   o
fordismo, para sentirmos o quanto esses processos s„o perigosos, ligados
que est„o a crises econÙmicas e guerras mundiais, pren˙ncio da futura
globalizaÁ„o. No seu tempo Gramsci reconhecia as formas (sob todos os
pontos de vista altamente diferentes) de uma ìfordizaÁ„o em atrasoî
(nachholender Fordisierung) ou de um ìfordismo dos pobresî, por um
lado, no fascismo dos Estados capitalistas, por outro, no stalinismo do
soc i a l i smo de  Es t ado  sovi È t i co.  As s im,   s e  pude rmos   compr e ende r  o
ì c o m u n i s m o î   h i s t Û r i c o   d a   U n i „ o   S o v i È t i c a   c o m o   u m   ì r e g i m e   d e
fordizaÁ„oî estatal-absolutista, as formaÁıes keynesianas do capitalismo
do welfare, de proveniÍncia social-democrata, podem ser compreendidas
c o m o   f o r m a Á ı e s   d o   f o r d i s m o   t r i u n f a n t e .   O s   d o i s   i r m „ o s   i n i m i g o s
fracassaram no limiar da transiÁ„o para o ìpÛs-fordismoî.
O neoliberalismo, tal como hoje o conhecemos, funciona baseado
num desenvolvimento das forÁas produtivas, t„o turbulento quanto cheio
de crises. Com isso entra em campo uma outra dimens„o da ìglobalizaÁ„oî:
as forÁas produtivas de alta tecnologia ó e diga-se claramente que entre
elas encontram-se tambÈm forÁas destrutivas e tecnologias da comunicaÁ„o
ó s„o de alcance global e formam a infra-estrutura tecnolÛgica da empresa
transnacional de trabalho social. A consciÍncia hoje dominante na esquerda
n„o quer ter nada a ver com isso e tende espontaneamente a abandonar
essa an·lise marxista elementar de tendÍncias contraditÛrias, carregadas
de potenciais histÛricos ambivalentes. Perplexa, persiste na sua aporia,
n„o querendo voltar a um regime autorit·rio-administrativo de cunho
stalinista, mas tambÈm n„o querendo ir alÈm da configuraÁ„o (Gestaltung)
das forÁas histÛricas, pelo menos n„o em qualquer sentido que ouse ser
construtivo. PÙncio Pilatos e n„o mais Prometeu È o ilustre santo do espÌrito
do tempo. O estado espiritual da esquerda encontra-se condicionado pelo
fato de, em face do fracasso da  perestroika, ter evitado a problem·tica
suscitada por ela, em vez de continuar ao menos a pensar teoricamente
sobre as questıes postas ali no inÌcio: relaÁıes de produÁ„o autorit·rioadministrativas centralizadas no Estado, com sua ìdecomposiÁ„o do fator
subjetivoî (Anatoli Butenko), podiam ser apropriadas, em termos de
crescimento predominantemente extensivo, ‡ introduÁ„o de um fordismo
e s t a t a l   e   a o   t i p o   d e   emp r e s a   b a s e a d o   n e l e ,  ma s   e r am mu i t o   p o u c o
apropriadas ‡ reproduÁ„o ìintensivaî e, evidentemente, nada adequadas
‡   t r ans i Á „o pa r a  um modo de  produÁ „o de   a l t a   t e cnologi a ,   com  sua
flexibilizaÁ„o e reposiÁ„o estratÈgica dos indivÌduos trabalhadores. Isso132  ï  NEOLIBERALISMO E NEOFASCISMO
para n„o falar do esc·rnio que representavam em relaÁ„o ‡s perspectivas
marxistas origin·rias.
O elemento empreendedor e a iniciativa dos indivÌduos precisavam
ser recuperados pelos empres·rios capitalistas com sua monopolizaÁ„o
da iniciativa e serem inscritos nas relaÁıes de produÁ„o, para que estas
adquirissem de novo o atributo ìsocialistaî. Os meios de comunicaÁ„o de
alta tecnologia, construÌdos tanto no capitalismo quanto no socialismo de
Es t ado  como me ios  de  di fus „o unÌvocos   e   c ent r a l i z ados ,  pr e c i s avam
continuar a desenvolver-se como meios de comunicaÁ„o m˙ltiplos (nos
˙ltimos meses na RDA, na curtÌssima fase intermedi·ria apÛs a queda do
r e g ime   a u t o r i t · r i o - a dmi n i s t r a t i v o   e   a n t e s   d a   t oma d a   d o   p o d e r   p e l o
O c i d e n t e ,   a   t e l e v i s „ o   d e u   u m   f a s c i n a n t e   e x e m p l o   d e s s e   t i p o   d e
func ionamento novo,  que  devolveu  aos   conc e i tos   ìmÌdi a î   e   ì comunicaÁ„oî seu significado).
Jus t ament e  o  comput ador   e   a  Int e rne t ,  for Á a s  produt iva s  b· s i c a s
(Leitproduktivkr‰fte) de alta tecnologia, com toda a sua ambivalÍncia
fundamental, poderiam permitir que surgisse um modo de produÁ„o que
j· n„o obrigasse os indivÌduos a formas servis de divis„o do trabalho nem
‡ separaÁ„o entre trabalho fÌsico e intelectual e que, ao mesmo tempo e
pela primeira vez, conduzisse a uma base tÈcnica visando a democratizaÁ„o
de uma planificaÁ„o social de grande alcance. E n„o por ˙ltimo eles se
tornaram tambÈm portadores de uma das formas polÌticas mais decisivas
de um novo internacionalismo, utilizado pela primeira vez exemplarmente
pelos zapatistas e seus defensores ligados ‡ rede no mundo inteiro. A
ìgloba l i z a Á „oî   a l c anÁou  aqui   sor r a t e i r ament e   a   r e s i s t Ínc i a   cont r a  o
neoliberalismo, ou seja, conseguiu introduzir-se com sucesso na luta pela
globalizaÁ„o e fazer da Internet, criada outrora para a estratÈgia da guerra
nuclear dos Estados Unidos, o primeiro meio de comunicaÁ„o de uma
ìhumanidadeî que se constitui fragmentariamente.

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